segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Cavaleiros do Zodíaco: A explicação do fenômeno



Ikki, Shun, Seiya, Hyoga e Shiryu, embaixadores da fantasia

"No mundo contemporâneo, onde se nasce e se vive nas zonas urbanas forte e artificialmente iluminadas à noite, as crianças não se reúnem mais a céu aberto para ver as estrelas e escutar histórias sobre heróis e deuses fantásticos, que ligavam a existência da humanidade aos corpos celestes. Em tempos onde os videogames são os brinquedos mais ansiados no Natal, a tevê foi o meio pelo qual as antigas lendas foram contadas com uma embalagem modernizada, e é curioso constatar o apelo que tais lendas ainda exercem numa época em que há menos poesia diante da evolução tecnológica e científica, e na qual informações transmitidas em tempo real para dentro da casa pela tevê e pela internet tornam as pessoas céticas. O fenômeno dos Cavaleiros mostrou que mesmo no mundo atual ainda há espaço para a fantasia épica, tanto quanto na Antigüidade." Cristiane Sato
Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, no original), obra do mangaká Masami Kurumada, começou a ser publicada semanalmente em 1985 na revista Shonen Jump e animada pela Toei Animation a partir do ano seguinte. Em 1987 já começaram os indícios de que uma febre estava por vir no Japão e ainda nos anos 80, Kurumada já figurava entre as celebridades mais ricas do Japão graças a sua criação, o segundo anime mais assistido no mundo, atrás apenas de Dragon Ball do ainda mais rico Akira Toriyama.

O que justifica a febre Cavaleiros mundo afora? Existem características intrínsecas à série, sua qualidade própria, mas há também características de cada povo que o celebrou, bem como um contexto histórico que pode ter intensificado ou minado o sucesso dos Cavaleiros. Veremos aqui especificamente o caso brasileiro, pincelando rapidamente outros países.

Saint Seiya possui várias características capazes de fazer uma série pop se destacar entre o público infanto-juvenil. Primeiro, e mais óbvio, por se tratar de um puro Shonen, gênero que tem como público-alvo os jovens do sexo masculino e abrange quase todas as séries mais populares e lucrativas de anime, como Dragon Ball, Yu Yu Hakusho, Naruto e Bleach, séries sempre recheadas com cenas de ação, superação e companheirismo. Cavaleiros caiu fortemente no gosto masculino mas, surpreendentemente (não tanto), também ficou muito popular entre o público feminino, muito mais do que a média dos demais Shonen. Um dos fatores é estético. Os produtores escalaram  os designers responsáveis pelo fenômeno shojo (gênero para garotas) Lady Oscar - A rosa de Versalhes, sucesso nos anos 70, Shingo Araki e Michi Himeno, para reestilizar o traço dos personagens na versão animada, agradando também ao público feminino. Quem colecionava as revistas Herói e lia as declarações das meninas para seu Cavaleiro favorito, percebe a importância desse fator até mesmo fora do Japão.


Traço do Kurumada em Aoi Tori no Shinwa

Lady Oscar, qualquer semelhança com o traço do anime Saint Seiya não é mera coincidência
Um fator mais importante, certamente, foi a miscelânea de simbologias criada por Kurumada e pela Toei dentro do universo dos Cavaleiros. A série animada mistura mitologia grega, nórdica (saga de Asgard, exclusiva do anime), oriental e até católica em um dos movies, onde os defensores de Atena confrontam Lúcifer e Belzebu. Toda essa sorte de mitologias, sob a capa moderna do enredo dramático contado em forma de flashbacks, conseguiu prender um público mais maduro ao mesmo tempo em que era digerível pelas crianças. Juntando esses fatores, a série se popularizou nos dois gêneros e em idades não esperadas para um Shonen.

Lúcifer e Athena coexistem na mesma série sem maiores problemas

Na cultura pop, porém, nada cresce e se sustenta sem um bom esquema de negócios arquitetando atrás do palco cada passo da série. Seguindo o modelo de negócios implantado de modo pioneiro pelo gênio Osamu Tezuka em Astro Boy, os grandes títulos buscam fortes patrocinadores durante o processo de criação do anime, afinal, produzir animação é um processo caro. Uma das principais patrocinadoras da série foi a empresa de brinquedos japonesa Bandai. Seu interesse, claro, produzir e comercializar brinquedos dos personagens que faziam sucesso no mangá. Que fã nunca deu um olho da cara para comprar o boneco original com a armadura de metal que não parava no lugar? O fenômeno foi global. Revistas, cards, adesivos, figurinhas, cadernos, Cd's, roupas, qualquer coisa que tivesse algum cavaleiro de bronze estampado era sinônimo de retorno financeiro nos países onde o anime era exibido. Além disso, permear os fãs com produtos da série ajuda a prolongar a duração do sucesso, pois eles passam a respirá-la por mais tempo durante o dia, e de forma mais diversa, diminuindo a chance do enjôo com a mesmice. O caso Pokémon ilustra isso de forma mais efetiva.

Sonho de consumo da infância de milhões pelo mundo

Ok, qualidades intrínsecas e um bom plano de marketing milhares de outras séries também tiveram ou têm atualmente. O que explica a coqueluche sem precendentes e, até então, sem igual de Cavaleiros no Brasil? Sandra Monte nos indica o caminho no livro A presença do animê na tv brasileira. Para compreender o sucesso, temos que analisar o contexto econômico, cultural e social da época de exibição.

Antes de Cavaleiros, muitos outros animes foram exibidos na tv brasileira sem a sombra do seu sucesso. O anime era visto pelas emissoras menores como uma alternativa barata para preencher a grade horária. As emissoras maiores como a Globo viam com desconfiança essas produções japonesas de qualidade inferior à americana. Não existia a menor chance de alguma série japonesa causar comoção generalizada em emissoras de pouca audiência e sem alcance nacional. Muitos foram exibidos apenas em São Paulo, outros apenas no Rio de Janeiro.

Speed Racer, como National Kid, é mais venerado no Brasil do que no Japão

Cavaleiros do Zodíaco chegou, no dia 1º de Setembro de 1994, com uma estrutura narrativa diferente daquilo que o público brasileiro estava acostumado. Faziam sucesso na época nomes como Os Simpsons, Família Dinossauro, Chaves e Chapolin. O sentido de continuidade nos episódios lembrou a estrutura das novelas, que sempre foram sucesso no Brasil. Desde o século XIX, com as novelas em folhetins, passando pelo rádio e televisão, o brasileiro é um público que aprecia a estrutura narrativa das novelas. Cavaleiros relembrou o sucesso do último fenômeno infantil até então, a novela Carrossel. 1993 e a primeira metade de 1994 haviam deixado uma lacuna nesse sentido.

Os Cavaleiros herdaram o espaço narrativo deixado por Cirilo, Maria Joaquina e a turma mexicana do Carrossel

Além disso, o anime recebia tratamento de respeito pela Manchete, que na época, já possuia alcance nacional. Exibido sem cortes duas vezes por dia durante a semana (às 10:30 no programa Dudalegria e às 18:30 no Clube da Criança) e aos domingos, o anime gozou de um prestígio que nenhum outro anime recebera até então. Não era um tapa-buraco, e sim a estrela da emissora. Em seu auge de popularidade, os Cavaleiros conseguiram picos de 14 pontos no Ibope, superando inclusive a Rede Globo. Uma monstruosidade para uma emissora que geralmente obtinha índices rasteiros de audiência.

O tratamento foi inteligente para públicos imaturos. Se o sentido de continuidade é um estímulo para que os fãs se disciplinem a assistir uma série todos os dias no mesmo horário, também é uma forma de afugentar aqueles que, pegando do meio, não entendem nada do que está acontecendo na trama e logo desistem. Cavaleiros não nasceu como fenômeno, ganhou popularidade de forma progressiva. O que os executivos da Manchete fizeram para não expulsar esses novos potenciais telespectadores? Quando a série chegou ao episódio 52 (O Golpe Satânico de Ares), eles simplesmente voltaram e começaram a passar do começo. Fizeram isso mais uma vez. Desse modo não apenas abraçavam novos fãs, ao dar a chance de assistir do começo, como matavam de agonia e curiosidade aqueles que acompanhavam desde o começo, e assistiriam quantas reprises fossem necessárias para saber como acabaria a Saga do Santuário.

O 53º  episódio, finalmente algo inédito, foi ao ar exatamente no dia 1º de Maio de 1995, feriado nacional. Coincidência? Osamu Tezuka estreou seu Astro Boy no feriado de Ano Novo de 1963. Os americanos estrearam o seriado Anos Incríveis exatamente após o Superbowl de 1988. Eles sabem melhor do que ninguém os efeitos de lançar um evento esperado pelo público em um dia onde há necessariamente uma audiência maior. A Manchete repetiu a estratégia na saga de Asgard estacionando no episódio 84 (Condenado à morte! Réquiem de cordas!) e voltando para o 53º (Cassius morre por amor). A partir disso, o processo não se repetiu mais e a série seguiu até o final, quando a Manchete exibiu o último episódio no dia 17 de Outubro de 1995. Deu-se início ao show de reprises para fã algum colocar defeito. Repetiram-na até 12 de Setembro de 1997 ininterruptamente.

Inspirada no fenômeno Cavaleiros, a Manchete apostou em outros títulos de sucesso como Yu Yu Hakusho, Sailor Moon e Shurato

O fator econômico é peça chave para compreender a resposta brasileira. Após a 'década perdida' dos anos 80, quando a inflação corroia a economia nacional, o Plano Real em Julho de 1994 foi bem sucedido, 2 meses antes da estréia de Cavaleiros no país. Estabilizou os preços, trouxe otimismo e colocou o Real como moeda mais valorizada que o dólar. A classe média fez a festa; em segurança, se deu ao luxo de gastar mais em ítens não essenciais. Com o Real super-valorizado, conseguia comprar objetos importados sem a dificuldade de antes (não ignorar a abertura econômica iniciada por Collor em 1992). Um mercado ávido para os produtos licenciados dos Cavaleiros, sobretudo os bonecos articuláveis da Bandai, mas não apenas isso. Quem não se lembra dos quiosques da Bandai nos Shopping Centers? No caminho do faturamento fácil aberto pelos brinquedos, todos tiravam uma casquinha dos defensores de Atena. Mochilas, revistas, pôsteres venderam como água. Segundo Cristiane Sato, a empresa espanhola Samtoy arrecadou 85 milhões de dólares (no câmbio da época) apenas com a distribuição dos bonecos (oficiais, pense agora no mercado paralelo, aquele que vendia os bonecos com armadura de plástico).

Inclusive Monte afirma que os gastos da população na época eram pouco calculados, afinal, ninguém sabia ainda o real valor do Real. Se convertéssemos o que era pago nesses bonecos para os valores atuais, tomaríamos um susto com o preço.

A revista Herói é um símbolo dessa época. Quando ainda não havia internet, ela que mantinha os fãs atualizados sobre a série. Pincelava sobre outros enlatados pop como Batman, Tartarugas Ninja, Esquadrão Marte e Thunderbirds, mas a preferência era sempre dos Cavaleiros do Zodíaco, que dominavam quase todas as capas. Devia ser exaustivo para os fãs de cultura pop e video-game, que não eram viciados em Cavaleiros, essa onipresença.

Primeira edição, eu tenho!! (R$ 1,95; que beleza)
No Brasil a série voltou a ser exibida no Cartoon Network e na Band, além de emissoras locais, sem grande destaque. Nos Estados Unidos os Knights não fizeram muito sucesso, sofrendo com a censura na televisão. A América Latina como um todo recebeu bem a série, sobretudo Argentina e México. Na Europa, Espanha e França foram os principais públicos. Inclusive foi o francês Jérome Alquié que em 2001, muito antes da animação oficial da Saga de Hades pela Toei, produziu dois trailers (O encontro de Ikki e Pandora/Cavaleiros na frente do muro das lamentações). Chegou a alegar que se a Toei não queria animar a Saga, ele mesmo compraria os direitos da série e produziria. Vejam o trabalho amador do fã francês:






É possível concluir que Cavaleiros foi o anime certo, na emissora certa e no momento certo. Pessoalmente, acho que apenas Pokémon teria igual capacidade de estourar na mesma situação. Uma série longa, que explora um universo de fantasia, possui personagens carismáticos, um jogo eletrônico dos mais populares e centenas de pokémons para os mais diversos tipos de produtos licenciados (no sentido Marketing, Pokémon é melhor que qualquer outro)

Você pensa. Oras, se a economia do país está ainda melhor hoje em dia, se outra séries como Pokémon e Dragon Ball possui igual ou maior potencial econômico, se são compostos de muito mais episódios, por que o fenômeno não se repetiu na mesma intensidade ou até com mais força? Pokémon chegou muito perto, outros nem arranharam...O que justifica? Em breve falarei sobre a atual situação do anime no Brasil.

Arte do italiano FaGian. Nem Pikachu superou a febre Saint Sei

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