terça-feira, 1 de maio de 2012

A cantora careca

CENA IV


[O Sr. e a Sra. Martin sentam-se frente a frente, sem se falarem. Sorriem um para o outro, timidamente. O diálogo que se segue deve ser dito pausadamente, monótono, meio cantante, sem nuances.]
SR. MARTIN: Desculpe minha senhora, mas me parece, se não estou enganado, que a conheço de algum lugar.
SRA. MARTIN: Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum lugar.
SR. MARTIN: Por acaso, minha senhora, eu não a teria visto em Manchester?
SRA. MARTIN: É bem possível. Eu sou da cidade de Manchester! Mas não me lembro muito bem, meu senhor, eu não poderia dizer se o vi ou não!
SR. MARTIN: Meu Deus, que curioso! Eu também sou da cidade de Manchester, minha senhora!
SRA. MARTIN: Que curioso!
SR. MARTIN: Que curioso! … Só que eu, minha senhora, saí de Manchester há mais ou menos cinco semanas!
SRA. MARTIN: Que curioso! Que estranha coincidência! Eu também, meu senhor, saí da cidade de Manchester há mais ou menos cinco semanas.
SR. MARTIN: Peguei o trem das oito e meia da manhã, que chega em Londres às quinze para as cinco, minha senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso! Que estranho! E que coincidência! Eu também peguei o mesmo trem, meu senhor.
SR. MARTIN: Meu Deus, que curioso! Então, minha senhora, talvez eu a tenha visto no trem?
SRA. MARTIN: É bem possível, pode ser, é plausível, e, afinal, por que não!… Mas eu não me lembro disso, meu senhor!
SR. MARTIN: Eu estava viajando de segunda classe, minha senhora. Não existe segunda classe na Inglaterra, mas assim mesmo eu viajo de segunda classe.
SRA. MARTIN: Que estranho, que curioso, e que coincidência! Eu também, meu senhor, estava viajando de segunda classe!
SR. MARTIN: Que curioso! Talvez nós tenhamos nos encontrado na segunda classe, minha cara senhora!
SRA. MARTIN: É bem possível, pode ser. Mas eu não me lembro muito bem, meu caro senhor!
SR. MARTIN: Meu lugar era no vagão número oito, sexto compartimento, minha senhora!
SRA. MARTIN: Que curioso! Meu lugar também era no vagão número oito, sexto compartimento, meu caro senhor!
SR. MARTIN: Que curioso e que estranha coincidência! Talvez nós tenhamos nos encontrado no sexto compartimento, minha cara senhora?
SRA. MARTIN: É bem possível, afinal! Mas eu não me lembro, meu caro senhor!
SR. MARTIN: Para falar a verdade, minha cara senhora, eu também não me lembro, mas é possível que tenhamos nos visto lá, e, pensando bem, a coisa me parece mesmo bem possível!
SRA. MARTIN: Oh! Realmente, é claro, realmente, meu senhor!
SR. MARTIN: Que curioso!… Meu lugar era o número três, do lado janela, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Oh, meu Deus, que curioso e que estranho, meu lugar era o numero seis, perto da janela, em frente ao senhor, meu caro senhor.
SR. MARTIN: Oh, meu Deus, que curioso e que coincidência!… Nós estávamos então frente a frente, minha cara senhora! É aí que devemos ter-nos visto!
SRA. MARTIN: Que curioso! É possível, mas eu não me lembro meu senhor.
SR. MARTIN: Para falar a verdade, minha cara senhora, eu também não me lembro. Contudo, é bem possível que nós tenhamos nos visto naquela ocasião.
SRA. MARTIN: É verdade, mas eu não estou muito certa disso, meu senhor.
SR. MARTIN: Mas não foi a senhora, minha cara senhora, a senhora me pediu para pôr sua maleta no bagageiro e que em seguida me agradeceu e me deu permissão para fumar?
SRA. MARTIN: É sim, devia ser eu, meu senhor! Que curioso, que curioso, e que coincidência!
SR. MARTIN: Que curioso, que estranho, que coincidência! Muito bem, e então, então talvez nós tenhamos nos conhecido naquele momento, minha senhora?
SRA. MARTIN: Que curioso e que coincidência! É bem possível, meu caro senhor! Contudo, acho que não me lembro.
SR. MARTIN: Eu também não, minha senhora.
[Um momento de silêncio. O relógio bate]
SR. MARTIN: Desde que cheguei a Londres, moro na Rua Bromfield, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha chegada a Londres, moro na Rua Bromfield, meu caro senhor.
SR. MARTIN: Que curioso, mas então, talvez nós tenhamos nos encontrado na Rua Bromfield, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso, que estranho! É bem possível, afinal! Mas eu não me lembro meu caro senhor.
SR. MARTIN: Eu moro no número dezenove, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso, eu também moro no número dezenove, meu caro senhor.
SR. MARTIN: Mas então, mas então, mas então, mas então, mas então, talvez nós tenhamos nos visto naquela casa, minha cara senhora?
SRA. MARTIN: É bem possível, mas eu não me lembro meu caro senhor.
SR. MARTIN: Meu apartamento fica no quinto andar, é o número oito, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso, meu Deus, que estranho! E que coincidência! Eu também moro no quinto andar, no apartamento número oito, meu caro senhor.
SR. MARTIN: Que curioso, que curioso, que curioso e que coincidência! Sabe, no meu quarto, eu tenho uma cama. Minha cama fica coberta com um edredom verde, encontra-se no fim do corredor, entre o lavabo e a biblioteca, minha cara senhora!
SRA. MARTIN: Que coincidência, ah meu Deus, que coincidência! Meu quarto também tem uma cama com um edredom verde e se encontra no fim do corredor, entre o lavabo, meu caro senhor, e a biblioteca!
SR. MARTIN: Que estranho, que curioso! Então, minha senhora, moramos no mesmo quarto e dormimos na mesma cama, minha cara senhora. Talvez seja lá que nós tenhamos nos encontrado!
SRA. MARTIN: Que curioso e que coincidência! É bem possível que tenhamos nos encontrado lá, e talvez até mesmo na noite passada. Mas eu não me lembro meu caro senhor.
SR. MARTIN: Eu tenho uma filhinha, minha filhinha, ela mora comigo, minha cara senhora. Ela tem dois anos, é loira, tem um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e se chama Alice, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que estranha coincidência! Eu também tenho uma filhinha, ela tem dois anos, um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e também se chama Alice, meu caro senhor.
SR. MARTIN: [com a mesma voz arrastada, monótona] Que curioso e que coincidência! E estranho! Talvez seja a mesma, minha cara senhora!
SRA. MARTIN: Que curioso! É bem possível, meu caro senhor.
[Um momento de silêncio bem longo. O relógio bate vinte e nove vezes]
SR. MARTIN: [após refletir longamente, levanta-se lentamente e, sem se apressar, dirige-se até a Sra. Martin que, surpresa com o ar solene do Sr. Martin, também se levantou, muito suavemente; o Sr. Martin fala com a mesma voz singular, monótona, vagamente cantante]
Então, minha cara senhora, creio que não há duvida, nós já nos vimos e a senhora é minha própria esposa… Elisabeth, eu reencontrei você!
[aproximando-se do Sr. Martin sem se apressar. Eles se abraçam sem expressão. O relógio soa uma vez, muito forte. A batida do relógio deve ser tão forte que deve fazer os espectadores se sobressaltarem. O casal Martin não a ouve.]
SRA. MARTIN: Donald é você, Darling!
 

[Eles se sentam na mesma poltrona, permanecem abraçados e adormecem. O relógio bate ainda várias vezes. Mary, na ponta dos pés, um dedo nos lábios, entra suavemente em cena e dirige-se ao público]

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