Ikki, Shun, Seiya, Hyoga e Shiryu, embaixadores da fantasia |
"No mundo contemporâneo, onde se nasce e se vive nas zonas urbanas forte e artificialmente iluminadas à noite, as crianças não se reúnem mais a céu aberto para ver as estrelas e escutar histórias sobre heróis e deuses fantásticos, que ligavam a existência da humanidade aos corpos celestes. Em tempos onde os videogames são os brinquedos mais ansiados no Natal, a tevê foi o meio pelo qual as antigas lendas foram contadas com uma embalagem modernizada, e é curioso constatar o apelo que tais lendas ainda exercem numa época em que há menos poesia diante da evolução tecnológica e científica, e na qual informações transmitidas em tempo real para dentro da casa pela tevê e pela internet tornam as pessoas céticas. O fenômeno dos Cavaleiros mostrou que mesmo no mundo atual ainda há espaço para a fantasia épica, tanto quanto na Antigüidade." Cristiane Sato
Cavaleiros
do Zodíaco (Saint Seiya, no original), obra do mangaká Masami Kurumada,
começou a ser publicada semanalmente em 1985 na revista Shonen Jump e
animada pela Toei Animation a partir do ano seguinte. Em 1987 já
começaram os indícios de que uma febre estava por vir no Japão e ainda
nos anos 80, Kurumada já figurava entre as celebridades mais ricas do
Japão graças a sua criação, o segundo anime mais assistido no mundo,
atrás apenas de Dragon Ball do ainda mais rico Akira Toriyama.
O que justifica a febre
Cavaleiros mundo afora? Existem características intrínsecas à série, sua
qualidade própria, mas há também características de cada povo que o
celebrou, bem como um contexto histórico que pode ter intensificado ou
minado o sucesso dos Cavaleiros. Veremos aqui especificamente o caso
brasileiro, pincelando rapidamente outros países.
Saint Seiya possui várias
características capazes de fazer uma série pop se destacar entre o
público infanto-juvenil. Primeiro, e mais óbvio, por se tratar de um
puro Shonen, gênero que tem como público-alvo os jovens do sexo
masculino e abrange quase todas as séries mais populares e lucrativas de
anime, como Dragon Ball, Yu Yu Hakusho, Naruto e Bleach, séries sempre
recheadas com cenas de ação, superação e companheirismo. Cavaleiros caiu
fortemente no gosto masculino mas, surpreendentemente (não tanto),
também ficou muito popular entre o público feminino, muito mais do que a
média dos demais Shonen. Um dos fatores é estético. Os produtores
escalaram os designers responsáveis pelo fenômeno shojo (gênero para
garotas) Lady Oscar - A rosa de Versalhes, sucesso nos anos 70, Shingo
Araki e Michi Himeno, para reestilizar o traço dos personagens na versão
animada, agradando também ao público feminino. Quem colecionava as
revistas Herói e lia as declarações das meninas para seu Cavaleiro
favorito, percebe a importância desse fator até mesmo fora do Japão.
Traço do Kurumada em Aoi Tori no Shinwa |
Lady Oscar, qualquer semelhança com o traço do anime Saint Seiya não é mera coincidência |
Um fator mais
importante, certamente, foi a miscelânea de simbologias criada por
Kurumada e pela Toei dentro do universo dos Cavaleiros. A série animada
mistura mitologia grega, nórdica (saga de Asgard, exclusiva do anime),
oriental e até católica em um dos movies, onde os defensores de Atena
confrontam Lúcifer e Belzebu. Toda essa sorte de mitologias, sob a capa
moderna do enredo dramático contado em forma de flashbacks, conseguiu
prender um público mais maduro ao mesmo tempo em que era digerível pelas
crianças. Juntando esses fatores, a série se popularizou nos dois
gêneros e em idades não esperadas para um Shonen.
Lúcifer e Athena coexistem na mesma série sem maiores problemas |
Na cultura pop, porém, nada cresce e
se sustenta sem um bom esquema de negócios arquitetando atrás do palco
cada passo da série. Seguindo o modelo de negócios implantado de modo
pioneiro pelo gênio Osamu Tezuka em Astro Boy, os grandes títulos
buscam fortes patrocinadores durante o processo de criação do anime,
afinal, produzir animação é um processo caro. Uma das principais
patrocinadoras da série foi a empresa de brinquedos japonesa Bandai.
Seu interesse, claro, produzir e comercializar brinquedos dos
personagens que faziam sucesso no mangá. Que fã nunca deu um olho da
cara para comprar o boneco original com a armadura de metal que não
parava no lugar? O fenômeno foi global. Revistas, cards, adesivos,
figurinhas, cadernos, Cd's, roupas, qualquer coisa que tivesse algum
cavaleiro de bronze estampado era sinônimo de retorno financeiro nos
países onde o anime era exibido. Além disso, permear os fãs com produtos
da série ajuda a prolongar a duração do sucesso, pois eles passam a
respirá-la por mais tempo durante o dia, e de forma mais diversa,
diminuindo a chance do enjôo com a mesmice. O caso Pokémon ilustra isso
de forma mais efetiva.
Sonho de consumo da infância de milhões pelo mundo |
Ok, qualidades intrínsecas e um
bom plano de marketing milhares de outras séries também tiveram ou têm
atualmente. O que explica a coqueluche sem precendentes e, até então,
sem igual de Cavaleiros no Brasil? Sandra Monte nos indica o caminho no
livro A presença do animê na tv brasileira. Para compreender o sucesso, temos que analisar o contexto econômico, cultural e social da época de exibição.
Antes de Cavaleiros, muitos
outros animes foram exibidos na tv brasileira sem a sombra do seu
sucesso. O anime era visto pelas emissoras menores como uma alternativa
barata para preencher a grade horária. As emissoras maiores como a Globo
viam com desconfiança essas produções japonesas de qualidade inferior à
americana. Não existia a menor chance de alguma série japonesa causar
comoção generalizada em emissoras de pouca audiência e sem alcance
nacional. Muitos foram exibidos apenas em São Paulo, outros apenas no
Rio de Janeiro.
Speed Racer, como National Kid, é mais venerado no Brasil do que no Japão |
Cavaleiros do Zodíaco chegou, no dia
1º de Setembro de 1994, com uma estrutura narrativa diferente daquilo
que o público brasileiro estava acostumado. Faziam sucesso na época
nomes como Os Simpsons, Família Dinossauro, Chaves e Chapolin. O sentido
de continuidade nos episódios lembrou a estrutura das novelas, que
sempre foram sucesso no Brasil. Desde o século XIX, com as novelas em
folhetins, passando pelo rádio e televisão, o brasileiro é um público
que aprecia a estrutura narrativa das novelas. Cavaleiros relembrou o
sucesso do último fenômeno infantil até então, a novela Carrossel. 1993 e
a primeira metade de 1994 haviam deixado uma lacuna nesse sentido.
Os Cavaleiros herdaram o espaço narrativo deixado por Cirilo, Maria Joaquina e a turma mexicana do Carrossel |
Além disso, o anime recebia tratamento
de respeito pela Manchete, que na época, já possuia alcance nacional.
Exibido sem cortes duas vezes por dia durante a semana (às 10:30 no
programa Dudalegria e às 18:30 no Clube da Criança) e aos domingos, o
anime gozou de um prestígio que nenhum outro anime recebera até então.
Não era um tapa-buraco, e sim a estrela da emissora. Em seu auge de
popularidade, os Cavaleiros conseguiram picos de 14 pontos no Ibope,
superando inclusive a Rede Globo. Uma monstruosidade para uma emissora
que geralmente obtinha índices rasteiros de audiência.
O tratamento foi inteligente
para públicos imaturos. Se o sentido de continuidade é um estímulo para
que os fãs se disciplinem a assistir uma série todos os dias no mesmo
horário, também é uma forma de afugentar aqueles que, pegando do meio,
não entendem nada do que está acontecendo na trama e logo desistem.
Cavaleiros não nasceu como fenômeno, ganhou popularidade de forma
progressiva. O que os executivos da Manchete fizeram para não expulsar
esses novos potenciais telespectadores? Quando a série chegou ao
episódio 52 (O Golpe Satânico de Ares), eles simplesmente voltaram e
começaram a passar do começo. Fizeram isso mais uma vez. Desse modo não
apenas abraçavam novos fãs, ao dar a chance de assistir do começo, como
matavam de agonia e curiosidade aqueles que acompanhavam desde o começo,
e assistiriam quantas reprises fossem necessárias para saber como
acabaria a Saga do Santuário.
O 53º episódio, finalmente algo
inédito, foi ao ar exatamente no dia 1º de Maio de 1995, feriado
nacional. Coincidência? Osamu Tezuka estreou seu Astro Boy no feriado de
Ano Novo de 1963. Os americanos estrearam o seriado Anos Incríveis
exatamente após o Superbowl de 1988. Eles sabem melhor do que ninguém os
efeitos de lançar um evento esperado pelo público em um dia onde há
necessariamente uma audiência maior. A Manchete repetiu a estratégia na
saga de Asgard estacionando no episódio 84 (Condenado à morte! Réquiem
de cordas!) e voltando para o 53º (Cassius morre por amor). A partir
disso, o processo não se repetiu mais e a série seguiu até o final,
quando a Manchete exibiu o último episódio no dia 17 de Outubro de 1995.
Deu-se início ao show de reprises para fã algum colocar defeito.
Repetiram-na até 12 de Setembro de 1997 ininterruptamente.
Inspirada no fenômeno Cavaleiros, a Manchete apostou em outros títulos de sucesso como Yu Yu Hakusho, Sailor Moon e Shurato |
O fator econômico é peça chave para
compreender a resposta brasileira. Após a 'década perdida' dos anos 80,
quando a inflação corroia a economia nacional, o Plano Real em Julho de
1994 foi bem sucedido, 2 meses antes da estréia de Cavaleiros no país.
Estabilizou os preços, trouxe otimismo e colocou o Real como moeda mais
valorizada que o dólar. A classe média fez a festa; em segurança, se deu
ao luxo de gastar mais em ítens não essenciais. Com o Real
super-valorizado, conseguia comprar objetos importados sem a dificuldade
de antes (não ignorar a abertura econômica iniciada por Collor em
1992). Um mercado ávido para os produtos licenciados dos Cavaleiros,
sobretudo os bonecos articuláveis da Bandai, mas não apenas isso. Quem
não se lembra dos quiosques da Bandai nos Shopping Centers? No caminho
do faturamento fácil aberto pelos brinquedos, todos tiravam uma
casquinha dos defensores de Atena. Mochilas, revistas, pôsteres venderam
como água. Segundo Cristiane Sato, a empresa espanhola Samtoy arrecadou
85 milhões de dólares (no câmbio da época) apenas com a distribuição
dos bonecos (oficiais, pense agora no mercado paralelo, aquele que
vendia os bonecos com armadura de plástico).
Inclusive Monte afirma que os
gastos da população na época eram pouco calculados, afinal, ninguém
sabia ainda o real valor do Real. Se convertéssemos o que era pago
nesses bonecos para os valores atuais, tomaríamos um susto com o preço.
A revista Herói é um símbolo
dessa época. Quando ainda não havia internet, ela que mantinha os fãs
atualizados sobre a série. Pincelava sobre outros enlatados pop como
Batman, Tartarugas Ninja, Esquadrão Marte e Thunderbirds, mas a
preferência era sempre dos Cavaleiros do Zodíaco, que dominavam quase
todas as capas. Devia ser exaustivo para os fãs de cultura pop e
video-game, que não eram viciados em Cavaleiros, essa onipresença.
Primeira edição, eu tenho!! (R$ 1,95; que beleza) |
No Brasil a série
voltou a ser exibida no Cartoon Network e na Band, além de emissoras
locais, sem grande destaque. Nos Estados Unidos os Knights não fizeram
muito sucesso, sofrendo com a censura na televisão. A América Latina
como um todo recebeu bem a série, sobretudo Argentina e México. Na
Europa, Espanha e França foram os principais públicos. Inclusive foi o
francês Jérome Alquié que em 2001, muito antes da animação oficial da
Saga de Hades pela Toei, produziu dois trailers (O encontro de Ikki e
Pandora/Cavaleiros na frente do muro das lamentações). Chegou a alegar
que se a Toei não queria animar a Saga, ele mesmo compraria os direitos
da série e produziria. Vejam o trabalho amador do fã francês:
Você pensa. Oras, se a economia
do país está ainda melhor hoje em dia, se outra séries como Pokémon e
Dragon Ball possui igual ou maior potencial econômico, se são compostos
de muito mais episódios, por que o fenômeno não se repetiu na mesma
intensidade ou até com mais força? Pokémon chegou muito perto, outros
nem arranharam...O que justifica? Em breve falarei sobre a atual
situação do anime no Brasil.
Arte do italiano FaGian. Nem Pikachu superou a febre Saint Sei |
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