Segundo Juan José Muñoz García,
professor de antropologia e ética
MADRI, 9 de junho de 2003 (ZENIT.org).- Juan José Muñoz García (Segovia, 1967), autor de “Cinema e mistério humano”, considera que o cinema continua sendo um instrumento privilegiado de compreensão do ser humano.
O professor Muñoz se vale do filme «Matrix» para argumentar sobre algumas tendências do pensamento atual: «Há muitos em nossa época pós-moderna que se conformam com um pensamento débil: meras opiniões ou simples dados. Afirmam, como Cypher em Matrix, que a ignorância é a felicidade».
O cinema nos explica como é o ser humano, adverte Muñoz, que nestas declarações a Zenit define o cinema como pedagógico e «o principal contador de contos» de nossos dias.
Juan José Muñoz é professor de antropologia e ética na área de comunicação do Centro Universitário Villanueva, adscrito à Universidade Compultense, e também é docente de filosofia no Colégio Retamar.
— O que quer dizer quando define o cinema como o principal antropólogo de nossos dias?
— Juan José Muñoz: Somente pretendo recordar que todos aprendemos o que consiste ser um bom filho ou um bom irmão ouvindo relatos. Graças aos contos assimilamos o que significa ser pessoa e como devemos desenvolver na vida.
As normas básicas do comportamento se concretizavam quando ouvíamos histórias e narrações com lições de moral. Quando crescemos a literatura completou essa função. Clássicos como «Dom Quixote», «Crime e Castigo», «A vida é sonho» ou «Enrique V» nos mostram que a grandeza da vida humana consiste na capacidade de superação, e na busca de um significado para a existência.
Lendo Shakespeare, por exemplo, podemos aprender as conseqüências dos zelos desmedidos («Otelo»), a dúvida excessiva («Hamlet») ou o afã do poder («Macbeth»). A isso se une a sorte de poder contemplar em nossa vida diária modelos próximos que encarnam os valores pelos quais vale a pena viver.
Essa função didática da arte se deu em todas as culturas. Seu êxito baseia-se em que a vida humana tem uma estrutura narrativa. Fascina-nos ouvir histórias porque não somos mera biologia, também temos uma biografia, ou seja, nossa vida é um projeto, um argumento que deve ter sentido.
Mas há várias décadas o principal contador de contos é o cinema. A sétima arte assumiu, em grande parte, o papel antropológico que antes tinha a literatura e as tradições.
O cinema se converteu, como adverte Julián Marías, em uma grande potência educadora. E se queremos fazer antropologia hoje, não podemos prescindir da grande tela.
Filmes tão díspares como «Matrix», «Razão e Sensibilidade», «Toy Story», «O Senhor dos Anéis», «Os Miseráveis», «A vida é bela» ou «Despertai» são lições de antropologia implícita, pois estão nos dizendo com imagens o que é o ser humano.
Contudo, o mundo audiovisual não é suficiente para conhecer a fundo o mistério do ser humano, necessita ser completado com as reflexões dos filósofos e dos teólogos.
— Por que segundo o senhor nos ocorre como Cypher, a personagem de Matrix, que apesar de seus conhecimentos prefere ficar ancorada nas aparências e abandonar a luta pela verdade?
— Juan José Muñoz: Descobrir a verdade e deixar que nos possua é uma aventura que não se realiza somente com o apoio da inteligência. Como já advertiram Platão e Aristóteles, e nos recordam os psicólogos da inteligência emocional, chegar à verdade requer esforço e hábito éticos.
Infelizmente há muitos em nossa época pós-moderna que se conformam com um pensamento débil: meras opiniões ou simples dados. Afirmam, como Cypher em Matrix, que a ignorância é a felicidade. E tomam decisões que atentam contra a dignidade humana, como matar pessoas não nascidas ou enfermos terminais, ou dão seu consentimento para que congelem e manipulem embriões humanos.
Creio que a personagem de Matrix nos permite observar como a verdade e a ética vão. Ao negar a verdade para ficar com as aparências, Cypher nega a ética e no ato seguinte trai seus companheiros. Por isso é tão perigoso dizer que não tem certezas, somente opiniões subjetivas, pois desse modo abrimos as portas à vontade arbitrária do mais forte (seja cientista, comunicador ou político).
— Desta forma, pode-se sair de Matrix, é possível fugir da caverna?
— Juan José Muñoz: Supostamente. Desta fuga já se fala em «A República» de Platão, em «O discurso do método» de Descartes e em «A vida é sonho» de Pedro Alderón de la Barca (1600-1681).
Por outro lado é uma idéia básica de todas as religiões que se realiza de modo efetivo no cristianismo: as coisas que captamos à primeira vista não são a única realidade nem a fundamental, há algo mais além.
Devemos transcender o imediato, sem negar seu valor relativo, e não ser escravos das sensações e dos instintos. É possível fugir da caverna, mas necessitamos ajuda para nos liberar dessa escravidão.
Ainda vivemos em uma sociedade de culto à aparência e à imagem — uma falha que exploram com êxito a imprensa e os «reality shows»— sabemos que é possível superar as sombras da caverna platônica porque todo ser humano tem um afã de transcendência. Sentimos, como Neo em Matrix, uma inquietude que nos leva a buscar a autêntica realidade.
Daí que uma vida voltada na pura exterioridade dê lugar ao vazio mais absoluto, à infelicidade e à depressão. Não faz mais falta ler as biografias de alguns famosos para comprovar que nada do que nos rodeia nos satisfaz plenamente.
Somente a verdade, o bem e a beleza em plenitude podem saciar nossa capacidade infinita de querer e desejar.
— Com domínio técnico e uma boa dose de humanidade, sai um cinema de qualidade?
— Juan José Muñoz: Com efeito. Há exemplos disso ao longo da história centenária da sétima arte. De fato os filmes que mais favor obtém do público são aqueles que tem um grande conteúdo humano.
E os filmes que analiso no livro como lições mestras de antropologia implícita reúnem esses requisitos. Por citar só alguns exemplos: «A habitação de Marvin», «A Sós», «Terras de Penumbra», «O azeite da vida», «Cirano de Bergerac» ou «Canção de Cuna».
Creio que para ser criativo não basta dominar os efeitos especiais, as técnicas musicais ou a fotografia.
O artista mostra âmbitos da vida humana em suas obras e o que o espectador quer — ainda que às vezes pareça o contrário— é poder contemplar da sua poltrona a pessoa retratada com fidelidade, não rebaixada à condição de objeto ou de animal instintivo.
— Como se supera o receio de tantos católicos frente ao cinema?
— Juan José Muñoz: Recomendaria a eles que lessem a Carta de João Paulo II aos artistas. Nela se afirma que «a beleza é chave do mistério e chamada ao transcendente».
O cinema tem essa capacidade de «fazer perceptível, mais ainda, fascinante se possível, o mundo do espírito». É um meio para expor o mistério humano «traduzindo-o em cores, formas ou sons que ajudam a intuição de quem contempla ou escuta. Tudo isto sem privar a mensagem de seu valor transcendente».
MADRI, 9 de junho de 2003 (ZENIT.org).- Juan José Muñoz García (Segovia, 1967), autor de “Cinema e mistério humano”, considera que o cinema continua sendo um instrumento privilegiado de compreensão do ser humano.
O professor Muñoz se vale do filme «Matrix» para argumentar sobre algumas tendências do pensamento atual: «Há muitos em nossa época pós-moderna que se conformam com um pensamento débil: meras opiniões ou simples dados. Afirmam, como Cypher em Matrix, que a ignorância é a felicidade».
O cinema nos explica como é o ser humano, adverte Muñoz, que nestas declarações a Zenit define o cinema como pedagógico e «o principal contador de contos» de nossos dias.
Juan José Muñoz é professor de antropologia e ética na área de comunicação do Centro Universitário Villanueva, adscrito à Universidade Compultense, e também é docente de filosofia no Colégio Retamar.
— O que quer dizer quando define o cinema como o principal antropólogo de nossos dias?
— Juan José Muñoz: Somente pretendo recordar que todos aprendemos o que consiste ser um bom filho ou um bom irmão ouvindo relatos. Graças aos contos assimilamos o que significa ser pessoa e como devemos desenvolver na vida.
As normas básicas do comportamento se concretizavam quando ouvíamos histórias e narrações com lições de moral. Quando crescemos a literatura completou essa função. Clássicos como «Dom Quixote», «Crime e Castigo», «A vida é sonho» ou «Enrique V» nos mostram que a grandeza da vida humana consiste na capacidade de superação, e na busca de um significado para a existência.
Lendo Shakespeare, por exemplo, podemos aprender as conseqüências dos zelos desmedidos («Otelo»), a dúvida excessiva («Hamlet») ou o afã do poder («Macbeth»). A isso se une a sorte de poder contemplar em nossa vida diária modelos próximos que encarnam os valores pelos quais vale a pena viver.
Essa função didática da arte se deu em todas as culturas. Seu êxito baseia-se em que a vida humana tem uma estrutura narrativa. Fascina-nos ouvir histórias porque não somos mera biologia, também temos uma biografia, ou seja, nossa vida é um projeto, um argumento que deve ter sentido.
Mas há várias décadas o principal contador de contos é o cinema. A sétima arte assumiu, em grande parte, o papel antropológico que antes tinha a literatura e as tradições.
O cinema se converteu, como adverte Julián Marías, em uma grande potência educadora. E se queremos fazer antropologia hoje, não podemos prescindir da grande tela.
Filmes tão díspares como «Matrix», «Razão e Sensibilidade», «Toy Story», «O Senhor dos Anéis», «Os Miseráveis», «A vida é bela» ou «Despertai» são lições de antropologia implícita, pois estão nos dizendo com imagens o que é o ser humano.
Contudo, o mundo audiovisual não é suficiente para conhecer a fundo o mistério do ser humano, necessita ser completado com as reflexões dos filósofos e dos teólogos.
— Por que segundo o senhor nos ocorre como Cypher, a personagem de Matrix, que apesar de seus conhecimentos prefere ficar ancorada nas aparências e abandonar a luta pela verdade?
— Juan José Muñoz: Descobrir a verdade e deixar que nos possua é uma aventura que não se realiza somente com o apoio da inteligência. Como já advertiram Platão e Aristóteles, e nos recordam os psicólogos da inteligência emocional, chegar à verdade requer esforço e hábito éticos.
Infelizmente há muitos em nossa época pós-moderna que se conformam com um pensamento débil: meras opiniões ou simples dados. Afirmam, como Cypher em Matrix, que a ignorância é a felicidade. E tomam decisões que atentam contra a dignidade humana, como matar pessoas não nascidas ou enfermos terminais, ou dão seu consentimento para que congelem e manipulem embriões humanos.
Creio que a personagem de Matrix nos permite observar como a verdade e a ética vão. Ao negar a verdade para ficar com as aparências, Cypher nega a ética e no ato seguinte trai seus companheiros. Por isso é tão perigoso dizer que não tem certezas, somente opiniões subjetivas, pois desse modo abrimos as portas à vontade arbitrária do mais forte (seja cientista, comunicador ou político).
— Desta forma, pode-se sair de Matrix, é possível fugir da caverna?
— Juan José Muñoz: Supostamente. Desta fuga já se fala em «A República» de Platão, em «O discurso do método» de Descartes e em «A vida é sonho» de Pedro Alderón de la Barca (1600-1681).
Por outro lado é uma idéia básica de todas as religiões que se realiza de modo efetivo no cristianismo: as coisas que captamos à primeira vista não são a única realidade nem a fundamental, há algo mais além.
Devemos transcender o imediato, sem negar seu valor relativo, e não ser escravos das sensações e dos instintos. É possível fugir da caverna, mas necessitamos ajuda para nos liberar dessa escravidão.
Ainda vivemos em uma sociedade de culto à aparência e à imagem — uma falha que exploram com êxito a imprensa e os «reality shows»— sabemos que é possível superar as sombras da caverna platônica porque todo ser humano tem um afã de transcendência. Sentimos, como Neo em Matrix, uma inquietude que nos leva a buscar a autêntica realidade.
Daí que uma vida voltada na pura exterioridade dê lugar ao vazio mais absoluto, à infelicidade e à depressão. Não faz mais falta ler as biografias de alguns famosos para comprovar que nada do que nos rodeia nos satisfaz plenamente.
Somente a verdade, o bem e a beleza em plenitude podem saciar nossa capacidade infinita de querer e desejar.
— Com domínio técnico e uma boa dose de humanidade, sai um cinema de qualidade?
— Juan José Muñoz: Com efeito. Há exemplos disso ao longo da história centenária da sétima arte. De fato os filmes que mais favor obtém do público são aqueles que tem um grande conteúdo humano.
E os filmes que analiso no livro como lições mestras de antropologia implícita reúnem esses requisitos. Por citar só alguns exemplos: «A habitação de Marvin», «A Sós», «Terras de Penumbra», «O azeite da vida», «Cirano de Bergerac» ou «Canção de Cuna».
Creio que para ser criativo não basta dominar os efeitos especiais, as técnicas musicais ou a fotografia.
O artista mostra âmbitos da vida humana em suas obras e o que o espectador quer — ainda que às vezes pareça o contrário— é poder contemplar da sua poltrona a pessoa retratada com fidelidade, não rebaixada à condição de objeto ou de animal instintivo.
— Como se supera o receio de tantos católicos frente ao cinema?
— Juan José Muñoz: Recomendaria a eles que lessem a Carta de João Paulo II aos artistas. Nela se afirma que «a beleza é chave do mistério e chamada ao transcendente».
O cinema tem essa capacidade de «fazer perceptível, mais ainda, fascinante se possível, o mundo do espírito». É um meio para expor o mistério humano «traduzindo-o em cores, formas ou sons que ajudam a intuição de quem contempla ou escuta. Tudo isto sem privar a mensagem de seu valor transcendente».
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