O cinema e a literatura dividem-se em seus exercícios premonitórios. Há filmes, como Mad Max, e romances, como Um cântico para São Leibowitz, que descrevem um futuro onde o avanço tecnológico desaparece - em geral, por suas contradições internas - e a humanidade é, de uma hora para outra, jogada em uma situação sociocultural primitiva. Noutros filmes, Matrix por exemplo, e romances, como O admirável mundo novo, o avanço tecnológico desenvolve-se de tal forma que não se pode mais pensar na Humanidade como singularidade. A morte do Homem torna-se uma verdade primária. Nas histórias do primeiro tipo, o dilema da humanidade é a reorganização de um mínimo de Lei que não seja, simplesmente, a supremacia do mais forte. Nos filmes da segunda categoria, um homem ou pequeno grupo dá-se conta de que algo com a realidade está errada. A realidade que a cultura em torno aponta é um engano, apresentado como verdade indiscutível pelo poder da insistência e pela insistência do poder. Nos dois tipos de filme, o que ‘salva’ a humanidade é, talvez, a única especificidade humana: a disponibilidade à transcendência. Isto é, a possibilidade de reconhecer o Outro; seja o Outro como Lei; seja o Outro como Real. Transcender é ir além da aparência, além do empirismo metodológico ou imanente. A personagem de Keanu Reeves, em Matrix, é esperada por um pequeno grupo como o Salvador. Estes poucos humanos transcenderam. Deram-se conta de que a realidade oferecida pela esfera dominante continha furos e não convencia. O argumento se estrutura como uma metáfora futurística do renascimento de Cristo. Cabe salientar que a versão cristã da transcendência - o reconhecimento do Outro como Deus - se é genuína, não é a única. O Outro como Lei ou o Outro como Real aproxima-se das versões psicanalítica e existencialista da transcendência.
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O filme Matrix, então, pertence à categoria das previsões
apocalípticas onde o traço característico da humanidade - a transcendência
- torna-se impossível em função do totalitarismo tecnológico. Na história,
os sujeitos são mantidos sob controle, imersos em uma onipotente
realidade virtual policiada por mandatários de uma instância de comando
sobre a qual o espectador nada sabe. Neste sentido, Matrix exibe um
paradoxo que define bem a ambigüidade, percebida ou não, da humanidade
perante a Ciência e a Tecnologia. Assim, enquanto nos divertimos e nos
fascinamos com os efeitos especiais, efeitos produzidos pela virtualidade
dos computadores atuais, assistimos ao horror que a realidade virtual pode
constituir. Se visto desta forma, o filme propõe uma reflexão entre o
prazer e a facilidade imediata que a Tecnologia oferece e o preço a pagar
pela artificialização e alienação que a Tecnologia e a Ciência
produzem. O filme revela uma face desta alienação: a realidade virtual,
apesar de oferecida por alguém que a define, é a ‘realidade real’
que os cidadãos vivem. A atividade subjetiva dos sujeitos naquela cultura
é inteiramente dominada por esta ‘verdade’ sobre o Real oferecida por
uma instância de domínio.
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Há essa possibilidade? Há a possibilidade da realidade incluir algo
da ordem da construção? A história de Matrix tem, portanto, a
chance de não se restringir a uma construção imaginativa desprovida de
praticidade? A humanidade pode ser, de fato, enganada a este ponto? A
ponto de que o que é vivido com todas as qualidades de uma vivência genuína
ser um engodo? Se a resposta a estas perguntas não recupera em nada o
animismo primitivo, nos faz tremer ou nos regozijar pela possibilidade de
receber "sim" como resposta.
Dois pesquisadores separados por aproximadamente cem anos, Freud e Maturana, orientam-nos. Em 1895, Freud escreveu o Projeto para uma Psicologia Científica. Neste texto, de uma maneira bastante original, o fundador da Psicanálise constrói um esboço de aparelho psíquico. A principal característica deste aparelho original é a separação que Freud faz entre o fenômeno bruto da percepção e a sensação consciente que nos garante a realidade como fenômeno presenciado. Entre a percepção bruta e a consciência, Freud interpõe o setor "psi" constituído fundamentalmente por representações que não copiam os objetos do mundo. E, além disso, estas representações vinculam-se à história do sujeito, isto é, representa-se as experiências que o corpo vive. Mas, caracteristicamente, as representações, se pretendem orientar e organizar a relação do sujeito com realidade, fazem-no de acordo com uma lógica própria que não repete a lógica dos objetos e acontecimentos que representam. Como este setor "psi" se interpõe entre a percepção bruta e a sensação consciente, é lícito concluir que a garantia de realidade recebe uma contribuição importante da organização das representações e, portanto, das experiências históricas e pessoais do sujeito. Isto é, sendo verdadeira a proposição freudiana, o que chamamos de realidade recebe uma colaboração daquele sujeito que a descreve. Na década de 60 do século XX, Maturana, um biólogo em nada influenciado pelo pensamento freudiano, conduziu experimentos sobre a percepção visual que levaram "à observação que diferentes combinações de comprimento de onda [luminosa] podem gerar a mesma experiência cromática, assim como as mesmas combinações de comprimento de onda podem gerar distintas combinações cromáticas". Estes experimentos - aqui não descritos - levaram o pesquisador a concluir que a visão é um fenômeno que depende da estrutura do sujeito que vive a experiência. O último passo das conclusões de Maturana levaram-no "a mudar a pergunta tradicional sobre a percepção, isto é, deixou de correlacionar a atividade da retina com a cor definida em termos de espectro luminoso, para correlacioná-la com o nome da cor". Desta forma, mesmo que Maturana e Freud não se influenciem reciprocamente, são dois autores que, a despeito de partirem de pressupostos distintos, propõem que o sujeito que percebe participa na construção da realidade onde vive, apesar da evidência empírica que atesta que há o ‘Eu’ e a ‘Realidade’. Aliás, é a Psicanálise que mostrou que esta diferenciação - entre o ‘Eu’ e a ‘Realidade’ -, na verdade, é constituída na rede de laços que se estabelece entre o infante que se desenvolve e os outros que o recebem, para o Bem ou para o Mal. A conclusão final é que o cérebro, órgão que sustenta a atividade psíquica, não tem autonomia para captar a realidade, se não estiver vinculado à linguagem. Como a linguagem vem de fora, por mais que a potencialidade lingüística possa se aproveitar de detalhes da estrutura cerebral, e participa na constituição da realidade, não é impossível concluir que outras formas de influenciar a atividade cerebral constitua uma realidade com todos os traços de legitimidade. Esta conclusão é a que permite responder "sim" às indagações acima expressas.
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Enfim, a referência a Freud e Maturana é para sustentar que o horror
virtual que domina a sociedade futurística de Matrix é possível.
A relação do homem à realidade é mais frágil do que a certeza
subjetiva supõe. Em última análise, significa que a renúncia à crítica,
a obediência cega a discursos de qualquer natureza tem o poder, sim, de
conformar a realidade que habitamos. A linguagem e a cultura são tão
condicionantes da realidade quanto a convicção de que o mundo real nos
antecede. Significa que transcender e sacar que há algo além de qualquer
experiência possível, se traz mais trabalho ao sujeito, é a única
maneira de garantir a insubmissão a qualquer discurso que vise dizer como
é o Homem ou como são as Coisas. Venha o discurso de onde vier: da
Religião, da Ciência, da Rede Mundial ou da Televisão. |
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quinta-feira, 29 de março de 2012
Matrix e o cérebro
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