José
Luiz Araujo Dorea Junior
ludorfbcrich@gmail.com
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Introdução
Procuraremos, nas linhas
que se seguem, tratar de algumas questões referentes à Tragédia Grega num de
seus aspectos principais: a individualidade. Qual o seu sentido? Como o indivíduo
(sendo “aquele que não se divide”) se relaciona com o mundo à sua volta? Como
ele se dá? Qual a sua consciência
de si? – Estas são algumas indagações que percorrem toda história da humanidade
e que foram tratadas singularmente pelos poetas trágicos em seu tempo, a saber,
no conhecido Período Clássico da história de Atenas – e se nos mostram vivas
e pertinentes até nossa modernidade.
Devido à (mais do que)
extensa literatura a respeito do tema e à quantidade de tragédias que até nós
chegaram, consideramos por conveniente delimitar o nosso estudo. O que não quer
dizer empobrecê-lo: procurar-se-á, portanto, um fio condutor para nossa perspectiva
(haja vista que com um material muito extenso poderíamos cair no erro de apresentar
apenas um amontoado de teorias confusamente expostas, deixando de lado questões
bem mais elucidativas e interessantes).
Dito isto, esclarecemos:
o texto ao qual nos reportamos maciçamente em nossas considerações é o conhecido
ensaio A Tragédia Grega, de Albin
Lesky, um dos maiores estudiosos do tema no século XX. Além das perspectivas
expostas por este autor no referido ensaio, analisamos algumas considerações
de Friedrich Nietzsche em A Origem da
Tragédia, que tivemos como relevantes. E, quanto às tragédias, nos atemos
a dois autores: Sófocles (em sua trilogia tebana – Édipo Rei, Édipo em Colono e
Antígona) e Eurípedes (com As Bacantes).
1 – Primórdios: o culto ao deus Dioniso
De
todos os confins do mundo antigo – para não falar aqui do moderno – desde Roma
até Babilônia, nos chegam documentos acerca da existência das festas dionisíacas
[...]
[1]
Entretanto, dois elementos
básicos, que já encontramos nos primórdios, sempre conferiram à tragédia grega
seu cunho essencial: Dioniso e o mito.
[2]
Tanto Nietzsche como
Lesky defendem a tese segundo a qual a tragédia ática tem em Dioniso suas origens.
E não só atestam este dado histórico, como colocam Dioniso como o deus trágico
por excelência, o que também afirma Rosenfield:
Dionysus é realmente
o melhor dos deuses para exigir a compensação de transgressões tão horrendas
quanto o fratricídio, a morte do pai pelo filho e do filho pelo pai. Nada é
mais lógico no “cálculo poético” do pensamento mítico do que a idéia de que
crimes tão extravagantes quanto os excessos amorosos e odiosos (o verter excessivo
do amor em ódio) exigem como purificador um deus específico, cujas manifestações
e funções têm afinidades profundas com a loucura autofágica de Tebas.
[3]
Não é aqui nossa intenção
a aventura a uma pesquisa histórica e ou demasiado erudita de auscultar uma
pré-história da Tragédia Grega num sentido bibliográfico-arqueológico. Não é
nosso intento este registro, haja vista que a questão abordada parte da perspectiva
segundo a qual a tragédia grega primeva tem a sua origem nas festas dionisíacas
e seus ditirambos. Nos parece mais interessante pensar sobre o que é o dionisíaco
e que poder ele é capaz de exercer no indivíduo – na maneira que exacerba toda
uma individualidade por assim dizer.
A questão mais intrigante
neste sentido é o transe dionisíaco. Devemos pensar como o transe se opera naquele
que participa da festa dionisíaca; segundo Lesky, o elemento básico da religião
dionisíaca é a transformação – o que coloca Dioniso num patamar diferenciado
em relação a outros deuses: ele é o deus-máscara, o que trans-forma.
Se ele é o deus transformador e purificador da individualidade, impele o homem
em seu transe incessante de purificação e quer libertar o indivíduo de todas
as suas amarras – que seriam estas amarras senão as instituições mais rígidas,
como o Estado e a família? Por Goldhill:
We see how the special
circumstances of Dionysus’ festival offer licence to escape the normal restrictions
and delimitations of the ordered social life of the city.
[4]
Se a embriaguez dionisíaca
é a fuga a todas as restrições e limitações de uma ordem social rígida ou seja,
se ela é realmente libertadora, não importa. O que há de se ressaltar é o poder
que ela lega à individualidade, bem como o tributo a lhe ser pago:
A Dioniso não bastam
orações e sacrifícios; o homem não está para com ele na relação, amiúde friamente
calculadora, de dar e receber; ele quer o homem inteiro, arrasta-o para o horror
de seu culto e, pelo êxtase, eleva-o acima de todas as misérias do mundo. Que
ele seja o deus do vinho designa tão somente uma parte de seu ser, pois toda
a incitante vida da natureza, toda a sua força criadora, configurou-se nele.
[5]
2 – O Trágico e o indivíduo
De que maneira o sentido
do trágico, que tem as suas origens nos cultos ao deus Dioniso e culminaram
na Tragédia Ática em autores como Sófocles e Eurípedes, nos diz algo acerca
do indivíduo – e suas questões mais fundamentais?
O efeito mais imediato
da tragédia dionisíaca é que as instituições políticas e a sociedade, em uma
palavra, os abismos que separam os homens uns dos outros, desapareciam ante
um sentimento irresistível que os conduzia ao estado de identificação primária
com a Natureza.
[6]
O que seria, para Nietzsche,
essa identificação primária com a Natureza? A identificação primária com a Natureza,
que nos é conduzida através do transe dionisíaco é a aproximação do homem da
sua acepção mais pura, às suas potencialidades diversas, a seu querer que é
um borbulhar incessante – no eterno dilema, na eterna ambigüidade que é o homem
ante o seu querer, o ser e o não-ser, o nascimento e a morte, o homem frente
a seu destino, o homem diante de si mesmo.
Desta maneira, o sentido
do trágico coloca o indivíduo em foco por tratar das questões mais profundas,
existenciais e elevar ao mais alto grau questões as mais devastadoras, acerca
“de qual é nossa origem? o que somos? Qual o sentido da existência?”
3 – Considerações em Sófocles e Eurípedes
A seguir trataremos considerações
acerca da individualidade que consideramos como bastante relevantes nas peças
por nós abordadas (Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona e As
Bacantes). Não é nossa proposta fazer rigidamente um resumo de cada uma
delas, mas sim – o que achamos mais interessante e conveniente – discuti-las
até mesmo simultaneamente à medida que reflexões mais condizentes assim se nos
apresentem. Todas estas obras, sem exceção, colocam o plano individual em destaque.
Seja no confronto entre interesses familiares e os do Estado, seja no embate
com as instituições da época, seja na dicotomia profano versus sagrado.
Em As
Bacantes, o personagem central do conflito é o deus Dioniso. Se o autor
coloca esta divindade (que é o deus da tragédia, por excelência) em destaque,
já podemos suspeitar de sua intenção ao deflagrar os conflitos que na obra se
nos apresentam. Seja uma postura de apologia ou não à divindade (questão mais
delicada, que pode suscitar as mais conflitantes leituras), o que importa é
que o deus Dioniso, a maior sumidade do trágico, está lá, a “entrar em cena”.
Despontam rumores que
Dioniso, o deus da individualidade, da música, da poesia, o deus-máscara, está
a disseminar seus encantos por Tebas, após cruzar todos os confins do mundo
– condutor de seu tirso e tendo como aliadas suas implacáveis Mênades. O ataque
às instituições mais conservadoras e o terror ao moralismo vigente provocados
pela presença do subversivo deus começam a incomodar Penteu, o chefe de Estado,
que quer acabar com tudo isso. O deus, que se apresenta pessoalmente ao governante,
é atacado por este em sua individualidade e seu orgulho: é aprisionado, ultrajado
e humilhado. Dioniso, então, afirma sua vingança. E trará a Penteu a sua morte
por obra da própria mulher que lhe deu a vida. Pois Dioniso, o deus da música,
é também aquele que, ferido em seu orgulho, não tem limites para sua fúria implacável:
ele também é o deus das trevas. Não somente é o deus da cultura: é o deus do
logos sim, mas também de suas formas titânicas. E Penteu, a representação
fiel do Estado, da moral, das instituições que cerceiam a liberdade e a expressão
de sua individualidade.
A fúria de Dioniso é
então despachada abruptamente: ele é o deus tragicizante, por assim dizer. Renegado,
desprezado, achincalhado e tendo por Penteu o tirano que lhe quer por rédeas,
convence a este que se disfarce para espreitar as Mênades (fazendo com que o
austero chefe de Estado fique ridiculamente trajado de mulher) e seja assassinado
por suas servas – as referidas Mênades –, que entusiasmadas destroçam
aquela criatura estranha e dissimulada que lhes invade o espaço. E a sutileza
mais cruel: a cabeça de Penteu será ostentada como um troféu por sua própria
mãe, Agave, que tem por Dioniso sua percepção alterada e só se dá conta de ter
degolado o próprio filho bem depois de todo ato consumado. A percepção alterada
é um traço marcante do êxtase dionisíaco: Agave, enquanto no transe do deus,
é pura individualidade, não tem laços de família que a prendam. Logo, Penteu
é uma simples criatura que invade e profana o espaço que é do deus, e precisa
ser aniquilado.
O desenlace de acontecimentos
que abruptamente transformam Édipo no herói central das duas peças que levam
seu nome, são a expressão do trágico em suas condições mais extremas. Ele é
aquele que tenta fugir do destino que o oráculo lhe proferira – e quanto mais
se afasta, mais se aproxima dele. Decifra o enigma da Esfinge, livra Tebas da maldição que a assolava
– e consequentemente deflagra a sua maldição, assassinando o próprio
pai e possuindo sua mãe. Édipo – culpado ou inocente? – esta não é questão mais
importante. O desenlace do destino, seu peso e estratagemas rigidamente edificados
por sua condição última – que é a existência – é o que leva Édipo a “profanar”
o sagrado. Ele quer o seu destino, o chama para si quando grita aos deuses que
não fora culpado por seus atos. Sua “culpa” – melhor, dizendo, a con-seqüência
de seus atos deflagra o conhecimento de si. É a partir do conhecimento de si
que Édipo assume o peso de sua existência. É o início não do fracasso ou do
retorno à glória de Rei, mas do mergulho em si mesmo, da caminhada rumo à “leveza”,
do conhecimento pleno de sua individualidade que se lhe apresenta a partir de
então nua e transbordante.
3.1 – A experiência ética singular
Em Sófocles, a figura
do herói trágico se ergue em meio a tensões inauditas. Porém, como a luta contra
as potências da vida o homem só pode assumi-la com base nas forças que tem em
seu próprio íntimo, aqui o herói trágico se converte em personalidade, e o homem
trágico é visto e representado como um todo em si fechado.
[7]
Édipo, em Colono, já
cego e conduzido por sua filha Antígona, ao ser interpelado por estar pisando
no terreno consagrado às Erínias, afirma que ali mesmo é que deseja ficar. Ele
afirma desta forma como o senhor do seu destino – e se este destino se lhe afigura
trágico, derradeiro, insuperável – é dele mesmo que Édipo quer beber “até o
último cálice da amargura”. Se todas as desgraças que lhe sucederam já não são
bastantes, quer ir até o fim. Assim é com Antígona que, contrária à sua irmã
Ismena – fiel às leis e determinações do Rei Creonte – a levar seu ato como
o projeto de sua vida e levá-lo a cabo mesmo que isto lhe custe a sanção que
venha a pôr fim à sua própria vida.
Na tragédia, não há espaço
para a hipocrisia, a falsidade, a dissimulação. Nada que é erigido ou acionado
fica pela metade, sem conseqüência. Todo ato, por qualquer conseqüência que
venha a suscitar, é o derradeiro. O arrependimento é a marca da fraqueza, e
merece os piores castigos – porque ao destino não se “vira as costas”. Quando
Creonte, ao desistir de levar sua arrogância e seu orgulho de Rei quando por
fim deseja mudar de atitude, já não há espaço para tal. Assim sendo, a experiência
do trágico de maneira alguma se nos afigura num anacronismo: todo ato desencadeia
uma conseqüência e esta, não se pode reverter. A verdade da totalidade do real
é singular, é a da expressão máxima da indivudualidade, por piores que sejam
as conseqüências, por mais abruptas que sejam.
3.2 – O corpo
Nas tragédias que aqui
focalizamos, bem como em muitas outras, o problema do corpo é fundamental. Não
é somente um caráter simbólico ou alegórico para os trágicos gregos: sua dimensão
é, antes de mais nada, ontológica.
Os personagens trágicos são “puro corpo” e este corpo é sua essência, por assim
dizer, trágico-constitutiva. Diferente da poesia épica, em que se pode falar
de uma areté do corpo (da beleza física de um deus ou de um guerreiro, por
exemplo), na tragédia o corpo é o essencial do indivíduo, é o seu peso –
o que lhe determina a sua condição trágica, sua existência fatal e é também
a sua forma de se dar – é o devir, é sua vida.
Se tomarmos o exemplo
d’ As Bacantes, a função do corpo
é decisiva: Penteu é o grande alvo de Dioniso, que por achincalhar o deus (que
se lhe apresenta de “carne e osso”) é convencido a vestir-se de mulher, a descaracterizar-se,
a “mascarar” seu próprio corpo. E este mesmo deus vai arquitetar seu assassinato
por sua própria mãe Agave: o próprio corpo que o trouxe à vida é o que vai toma-la.
E a forma de representar este ato, é também essencial: a morte de Penteu tem que acontecer de uma maneira brutal,
avassaladora, e assim ela se dá: partindo e destroçando o que lhe é essencial:
seu corpo.
Já na Antígona,
a questão marcante é a atitude da filha de Édipo: fazer os devidos ritos fúnebres
a seu irmão, Polinices. Tal ato desencadeia a ira do Rei Creonte, que considera
o irmão de Antígona um “traidor da pátria”. O castigo de Antígona, que Creonte
tenta remediar posteriormente mas sem sucesso, é ser encerrada viva. Ser o corpo
morto privado de seus devidos cultos e o corpo vivo condenado a uma caverna
subterrânea (privando-o assim da vida antes da hora devida) é sem dúvida uma
dupla profanação – profanação esta que é a causadora da condenação e de todas
as desgraças que recairão sobre o então rei tebano.
4 – Quais os limites do in-divíduo?
O herói trágico, como
afirmamos, é o personagem de uma experiência ética singular, na qual transubstancia-se
fatalmente, exprime sua individualidade no mais alto grau. Seja o destino de
Édipo, que o coloca nos limites derradeiros entre o sagrado e o profano, que
em seu destino se nos apresenta a passagem da glória para o infortúnio e do
infortúnio para a glória como um delgadíssimo fio, a romper-se fatalmente e
nos mostrar como possível “rasgar o véu do sagrado”, atravessar suas dimensões.
Seja Antígona, que afirma sua vontade de prestar as honras fúnebres ao irmão
e assim contraria veementemente o poder do chefe de Estado, o que lhe custa
a própria vida. O herói trágico é, em suma, a representação da individualidade
pura, nua, daquele que não se divide. Não se divide por não ser escravo de instituição
alguma, seja da polis, seja do genos, – mesmo dos próprios deuses. Somente
pertence ao indivíduo o seu destino e este, por mais desolador e derradeiro
que seja, é o predicado de sua individualidade total, é a afirmação de sua existência
em si. É o querer, é o encerrar de sua puríssima
vontade de ser.
É o indivíduo aquele
que, tendo deflagrada toda sua potencialidade em si mesmo, é ao mesmo tempo
erigido e limitado pelas instituições que ele mesmo criou. No entanto o furor
dionisíaco que consigna ao homem ao ensejo do trágico, arrasta-o violentamente
para o fundo de si mesmo, tornando-o capaz dos atos mais extremos possíveis
e suas inevitáveis conseqüências, mas também inevitavelmente do re-conhecer-se,
do des-velar-se, atraído, de um lado pelo logos que lhe faz as
mais intricadas perguntas e, do outro, por suas forças titânicas que tanto o
destroçam, como elevam e aliviam.
Conclusões
Colocamos então, desta
feita, comentários acerca da questão da individualidade na Tragédia Grega. De
modo algum podemos reservar este espaço a “conclusões” definitivas que nos se
apresentem clarividentes sem suscitar a mínima dúvida sequer. Pelo contrário,
o legado dos poetas trágico ressoa infinitamente em nós mesmos, sempre nos remete
a novas e novíssimas indagações, porque apontam para o cerne da questão “o que
é o homem” e nos mostra viés cada vez mais diversos, fervorosos e riquíssimos,
que nos levam não menos ao espanto do que ao torpor, não menos ao derradeiro
do que ao sublime – porque vemos o ordinário no extraordinário, porque estamos
olhando para nós mesmos. Finalizando:
Além
de todas as suas relações com as culturas posteriores, não queremos esquecer
aquilo que a presente exposição intentou mostrar: em sua estreita ligação com
a polis, a tragédia grega do século V é um fenômeno histórico singular e, como
reflexão do ser humano sobre a problemática de sua existência, uma criação de
validade que persiste por sobre o tempo.
[8]
Bibliografia
Eurípedes.
As Bacantes.
Goldhill,
Simon. Reading Geek Tragedy. New York,
Cambridge University Press, 1986.
Lesky,
Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Ed. Perspectiva,
2000.
Nietzsche,
Friedrich Wilhelm. El Origen de la Tragedia. Buenos Aires:
Ediciones Libertador, 2003
Rosenfield,
Kathrin H. Antígona – de Sófocles a Hölderlin:
por uma filosofia “trágica” da literatura.
Porto Alegre: L&PM, 2000.
Sófocles.
Tragédias do Ciclo Tebano – Édipo-Rei, Édipo
em Colono e Antígona. Lisboa, Editora Livraria Sá da Costa, 1957.
[1]
Nietzsche, F.W. op.cit. (p.30)
[2]
Lesky, Albin. op.cit. (p.73)
[3]
Rosenfield, Kathrin H. op.
cit. (p.332)
[4]
Goldhill, Simon. op.cit.
(p.78)
[5]
Lesky, Albin. op.cit. (p.74)
[6]
Nietzsche. F.W. op.cit. (p.56)
[7]
Lesky, Albin. op.cit. (p.168)[8] idem (p.280)
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