segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Novo Carnaval dos Animês


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Confesso minha ignorância: até poucos meses não tinha a mínima idéia de que o culto dos animês (desenhos animados de origem japonesa) havia deixado de ser uma atividade solitária diante das TVs e tomado conta de um circuito de festas em centenas de cidades brasileiras. Foi o Overmundo que me deu as primeiras dicas de que algo bem interessante estava acontecendo. O texto sobre a Pandora No Hako, banda de j-rock (aprendi ali que essa sigla - falada em inglês: jei-rock - significa rock japonês com preferência clara pela trilha sonora de animês) criada no Rio Grande do Norte, ficou por meses no topo da lista das colaborações mais lidas aqui no site. Pelo Overmundo também tive notícias de encontros de fãs de animês realizados por todo o Brasil: no Ceará, no Espírito Santo, em Sergipe, no Amapá. Fiquei então com uma pulga-pokemon atrás da orelha, com minha antena farejadora de "novidades culturais divertidas" ligada em alerta máximo: tem festa boa acontecendo no Brasil, e eu ainda não fui convidado!

Resultado: na primeira oportunidade apareci de penetra: ontem aconteceu o festival de aniversário de cinco anos da Anime Center, que é uma empresa de eventos de animês e mangás, aqui do Rio (para vocês verem como as coisas são bem organizadas: essa empresa já tem cinco anos, e não é a única no Brasil - sinal também que o negócio dá certo), realizado durante o chuvoso fim de semana no Centro Cultural da UERJ.

Cheguei atrasado, o cosplay já tinha começado. O que li no site não me tinha preparado para o que ia enfrentar ao vivo. Cosplay (como Ronaldo Lemos, companheiro de penetragem, me explicou) é outra abreviação nativa, desta vez para "costume play" - brincadeira de fantasia ou peça (no sentido teatral) de fantasia. Claro que eu sabia que ia encontrar um concurso de gente que se fantasia de personagens de animês. Mas não estava esperando tanta gente, no palco e na platéia. Quase não consegui entrar no teatro. Fui abrindo caminho à força na multidão (penetra é assim mesmo...), mas só consegui um cantinho na escada de entrada, e tive que passar por uma torturante sessão de alongamento para enxergar alguma coisa.

Valeu a pena. O que acontecia na platéia era até mais interessante do que as apresentações no palco. Uma balbúrdia ensandecida, como se todo mundo estivesse vendo o melhor espetáculo de suas vidas. Várias pessoas gritavam comentários, mas muita gente tinha umas plaquinhas brancas onde escreviam suas observações sobre o que estava acontecendo. A visão era a de um blog ao vivo, ou chat em três dimensões, com inúmeros "comments" surgindo aqui e ali em dezenas janelas de pop-ups simultâneas. Ou parecia uma história em quadrinhos, encenada por todos, cada personagem falando em seus respectivos balões. (Essas plaquinhas são muito comuns em outros eventos? É um fenômeno internacional? Por favor: quem souber mais responda essas minhas perguntas escrevendo um comentário abaixo!)

No palco iam desfilando várias personagens de animês que eu nunca tinha ouvido falar e outros mais conhecidos no mundo online (como os de Ragnarok). Havia várias etapas e categorias no concurso: desfile comum, encenações de trechos de desenhos animados, criações teatrais livres em cima das tramas dos desenhos animados etc. O mais bacana era a seqüência, um acontecimento atrás do outro: as cenas iam ganhando significados diferentes, produtos do acaso do que vinha antes e depois. Era como se todo mundo estivesse sampleando seus trechos preferidos dos animês, e a mixagem final fosse uma obra coletiva, feita ali na hora por muita gente, em interação com o público. Alguns trechos, deslocados de sua história original, ganham impacto estranhíssimo. Vocês sabem como são as narrativas dos animês, muitas vezes elas beiram o total esoterismo, com misturas alucinadas de mitologias de todas as procedências. Imagine tudo isso misturado no palco, em tom de chacota constante, mas que em determinados momentos adquire uma densidade metafísica digna dos melhores palcos de ópera (eu e meu relativismo sem-noção: óperas - ou qualquer outra manifestação cultural - também possuem um lado mico bem acentuado...)

Quem chega de fora, desprevenido, vai logo condenar tudo como uma pagação de mico coletiva. Eu mesmo, depois do cosplay, fiquei um pouco melancólico. Mas era uma melancolia também densa, um desconforto com a maluquice constante do ser humano (identificada também como minha maluquice - não estou tirando o corpo fora não, por isso a leve e doce tristeza que sentia...), capaz de se agarrar em qualquer coisa para ter instantes de felicidade, para construir seus paraísos artificiais. Desenvolvi na hora uma nova teoria da natureza humana, na qual a pagação de mico é necessidade fundamental. Então: toda cultura precisa criar espaços onde o mico é liberado - ninguém consegue viver com saúde física e mental se não pagar mico (de preferência na frente de um monte de gente) de vez em quando...

Mas o que acontecia no Anime Center era bem mais interessante do que uma simples pagação de mico coletiva. Ninguém ali era bobo: todo mundo parecia perceber o lado meio ridículo daquilo tudo (como percebemos o lado meio ridículo em quase tudo que fazemos, basta olhar para qualquer pista de dança...) Mas isso não impedia de a diversão ser "autêntica", e de muita gente levar aquilo tudo a sério, como se fosse a coisa mais séria do mundo (e diversão é mesmo uma das coisas mais sérias do mundo!) Uma vez o próprio Dorival Caymmi (ele mesmo, uma divindade na Terra) me deu sua receita para a felicidade: "é só a gente fingir que está alegre - vai fingindo, fingindo e quando vê está alegre mesmo!" Como discípulo, aprendi que essas palavras contêm o segredo prático para tudo, não só para a alegria. O pessoal no Anime Center estava fingindo muitas coisas: fingindo ser personagens de animê, fingindo estar no melhor espetáculo do mundo ("temos aqui nosso Cirque du Soleil particular!"), fingindo estar se divertindo com nunca etc. E não é que dá certo? Poucas vezes vi tanta gente se divertindo tanto!

E a diversão ficou boa mesmo quando fomos para o ginásio e o Anime Daiko começou a tocar. Também não sabia que isso já era uma febre, mas acho (apenas pelo que vi ontem na UERJ) que os daikos - grupos que tocam aquele tambor asiático chamado taiko, e fazem espetáculos de extrema energia - devem estar se espalhando pelo mundo como as rodas de capoeira (a procura que fiz agora no Google me deu de volta links para 556 mil páginas que contêm a palavra daiko - para taiko são quase 3 milhões, para capoeira são 6 milhões).

O Anime Daiko é um grupo de Londrina, Paraná (alguém pode escrever algum texto sobre o grupo aqui no Overmundo?), e mistura a música percussiva tradicional com os hits dos desenhos animados japoneses. O resultado é contagiante. A primeira música do seu show é bem tradicional. A segunda serve de base para uma coreografia animê executada só por quem é do grupo. Mas já na terceira música, o pessoal da platéia vai para o palco (que ontem era a quadra de futebol de salão da UERJ), forma uma roda em torno dos tambores (que tocam em cima das trilhas de animê que saem dos alto-falantes), e dança com coreografias coletivas diferentes para cada música - que todos sabem cantar em japonês.

Não estou ficando louco: aquilo era bonito demais! Parecia uma quadrilha pós-moderna. Parecia uma micareta de ETs. Parecia terreiro de ciber-umbanda onde baixam entidades do Yu-Gi-Oh!, misturadas com nintendogs e outros replicantes. Mas no fundo era só isto mesmo: MUITA gente se divertindo pra valer. Dava uma vontade louca de largar a pose e cair na roda (a mesma vontade que senti quando entrei no meu primeiro baile funk, 21 anos atrás), cantando e dançando como se não houvesse amanhã, ou como se o amanhã fosse o mais perfeito mundo de animê. O mais impressionante era que ninguém parecia estar bêbado de nenhuma droga - não foi preciso nenhum empurrãozinho para a dança começar: a apresentadora só disse: "agora todo mundo pode vir dançar". E todo mundo foi dançar.

Se eu encontrasse aquelas pessoas num dia comum na rua - garotos e garotas normais, bem grandinhos, mais para o estilo metal, meio emo ou indie também, muitos tons de pele e classes sociais diferentes (mas aparentemente mais Zona Norte que Zona Sul) -, nunca diria que seriam capazes (ou teriam a coragem) de entrar numa roda animê para fazer aquelas coreografias (algumas quase "ridículas" na sua infantilidade). Mas ninguém parecia ligar para olhares externos. Até porque eram pouquíssimos olhares externos. Todo mundo ali era da mesma tribo, e o que cada um fazia não poderia ser mais "normal". Todo mundo estava fazendo a mesma coisa: como diria meu querido amigo e também mestre Fausto Fawcett: destruiam seus egos na matéria em movimento.

Se eu fosse um profissional dos estudos culturais ou antropólogo pós-modernista (estou brincando, gente!), tentaria "defender" o ritual animê dizendo que é "desconstrução", ou "apropriação" da linguagem da mídia, ou tática de "resistência". Seriam palavras pomposas, politicamente corretas, que dariam respeitabilidade para a brincadeira. Mas não acho nada disso: aquela festa não é nada anti-mídia. Pelo contrário: é celebração de amor à mídia, à mídia mais mainstream (apesar de estar sobretudo na TV a cabo) do mundo hoje, ou que vai ser cada vez mais mainstream. É amor à mídia tal como ela existe, que torna possível a existência de fenômenos planetários como os mangás ou o metal. Os cosplayers não parecem querer uma outra mídia - querem mais mídia, querem inventar seu cantinho na mídia, para fazer mais festa. Querem complementar e não criticar. E que complemento bacana criaram! Que festa boa!

Por isso, para terminar, um conselho de mais velho maluco: alô garotos e garotas do animê: não acreditem em pais e professores que nunca ouviram falar no Naruto: vejam muita televisão! Leiam muito mangá! Por ali vocês vão aprender rapidinho, se já não aprenderam, quem foi Osamu Tezuka, ou quem é Grant Morrison. E suas festas vão ficar cada vez animadas! Só quero ser convidado: o Overmundo está aberto para anúncios das festas, para dicas sobre lugares nas várias cidades brasileiras onde os cosplayers se encontram, para textos sobre os eventos. Espero ver todo mundo sempre por aqui.

PS: Se tiver algum antropólogo estudando essas festas, por favor entre em contato. Se não tiver nenhum, que alguém se anime!

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